Quando eu era criança, um tio da minha melhor amiga era
obstetra. Nós éramos muito grudadas, então, eu encontrava esse tio com muita
frequência. E, em 70% das vezes, ele tinha que sair correndo. Eram as mulheres
entrando em trabalho de parto.
Certa vez ele me disse: “fiz (assisti) o parto de todos os
meus filhos”. E eu, que já tinha ouvido falar que médico não pode cuidar de
familiares, o questionei se isso não era proibido. Ele me respondeu: “eu sou o
pai, tenho o direito de recebê-los”. Aquilo nunca saiu da minha cabeça.
Parto sempre foi um assunto de meu interesse. Durante alguns
anos da minha adolescência, eu assisti diariamente um programa americano naqueles
canais de tv fechada. E cresci achando que sabia tudo sobre partos. Garanto que
já vi mais de 300 na televisão.
Primeiro, acreditava que o médico era necessário em todos os
tipos de parto. Segundo, que a dor beirava ao insuportável, e que parir deitada
era o correto. Mas, lá no fundo, alguma coisa me dizia que algo estava errado.
Minha mãe pariu 03 filhos em partos a jato. A bolsa rompia e ela tinha que ir
correndo para o hospital. No meu parto, o médico gritava pra enfermeira: “não
tira os anéis, tô vendo a cabeça do bebê, corre que ele vai nascer”.
Então, eu nunca precisei desconstruir nada na minha cabeça.
Cresci ouvindo que parto é um processo fisiológico, que a dor não é tão forte
assim e que depois de algumas horas, minha mãe tomava banho sozinha e de
cabeça... Aquilo soava muito poético pra mim.
Mas, na verdade, eu não sabia de nada. Toda aquela visão de
parto era equivocada, por mais que parecesse correta.
Muitos anos se passaram, me casei, e a maternidade passou a
aflorar mais e mais. Foi então que ouvi falar sobre o Renascimento do Parto.
Nunca me esqueço do dia em que vi o trailer desse documentário. Falei pro meu
marido que precisávamos assisti-lo urgentemente.
Coincidentemente, viajamos pra Brasília, e o filme, que não
tinha previsão pra chegar a Recife, estava passando lá. Imediatamente, corremos
pro cinema. Você pode achar bobagem, mas meu coração batia forte, eu sabia que
aquilo ia mudar a minha forma de ver o mundo.
E foi exatamente isso que aconteceu. Como eu já disse, sempre
me vi parindo, nunca me imaginei numa cesárea eletiva. Mas perai, para tudo!
Como assim eu não preciso que cortem o meu períneo pro meu bebê sair? O meu
marido pode entrar numa piscina e parir comigo? Meu bebê não precisa sofrer
intervenções horrorosas e desumanas? Ele não só pode, como deve vir direto pra
mim? Ele não precisa tomar banho, injeções e afins? E como assim eu posso parir
em casa? Isso é seguro mesmo? A amamentação pode ser afetada numa cesárea
eletiva? Os riscos são 3x maiores do que um parto normal?
Se você tiver dúvida do que vou dizer agora, pergunte pro meu
marido... Eu mal conseguia falar quando sai daquela sala. Era como se eu
tivesse entrado num mundo paralelo, onde eu só conseguia ouvir a minha própria
voz, nada mais. E meu marido também estava atônito. A única coisa que ele
conseguia dizer, era que estava tudo errado. “Mariana, tá tudo errado. Tudo”. E
eu só conseguia balançar a cabeça. SIM, está tudo errado.
No outro dia, eu continuava meio avoada. Foi então que
Alexandre me disse: uma amiga minha que pariu em casa mora aqui em Brasília.
Precisamos conversar com ela. À noite, já estávamos na casa dela, tomando uma
deliciosa sopa.
E esse dia foi tão marcante quanto o dia do filme. Camila
abriu a porta de sua casa com seu bebê de um mês nos braços. Magra, branca,
simples e serena. Na sala, poucos móveis e um moisés emprestado de uma amiga. A
sua filha mais velha de dois anos e meio dormia.
Rapidamente, iniciamos uma longa conversa sobre parto,
maternidade e afins. Disse a ela que estava muito chocada com a quantidade de
informações novas que recebi com o filme, e ela, com um sorriso muito calmo, me
disse: “Mari, eu tinha meus medos quanto ao parto domiciliar, minha família era
contra. E um dia, conversando com a minha doula, ela me questionou: “Camila e
se acontecer algo de ruim com o seu bebê no hospital, quem vai ser o culpado?
Todo mundo pode morrer num parto”. Aquilo também jamais saiu da minha cabeça.
Não controlamos nada, absolutamente nada.
Depois, me atrevi a perguntá-la sobre o seu parto. Fiquei
muito curiosa sobre como seria um parto domiciliar. Muito paciente, ela me contou
todos os passos, e no final, soltou uma das frases mais poderosas e verdadeiras
que eu já ouvi na minha vida: “o parto é um ato extremamente solitário. Você
pode estar rodeada da melhor equipe e do melhor marido, mas quem vai parir é
você. Ali, você está só, com todos os seus traumas e medos. Sai tudo, tudo
mesmo”.
Mas a noite não acabava por aí. Depois de um tempo, sua
filhinha acordou, e apareceu na sala meio descabelada, cheia de sono. Camila
estava dando de mamar ao recém-nascido, e a pequena passou por nós como se não
estivéssemos lá, chegou até sua mâe, baixou sua blusa, acariciou seu mamilo,
cheirou e começou a mamar. Camila continuou a conversar conosco, eu também
continuava a falar, mas meu marido estava de boca aberta. Nunca tinha visto
duas crianças mamando ao mesmo tempo.
Alguns podem não entender, mas essa cena me fez revisar tudo,
refletir sobre muita coisa. Aquilo era a natureza falando, um mamífero precisa
de leite, é só o que ele quer. Nada de paninho no rosto da criança, nada de
vergonha, pudor, moral ou qualquer coisa que o valha.
Camila não me apresentou a sua casa, não me mostrou seu
quarto, seu armário ou seu banheiro. Não me levou pra conhecer o quarto do
bebê. Em sua casa, sequer havia televisão. Camila não forçou sua filhinha a me
beijar. Apenas disse que Tio Alexandre era amigo da mamãe há muitos anos, e que
tia Mari era a esposa dele. Sem forçar, sem ordenar.
Depois de muita conversa e de uma sopa de legumes deliciosa,
resolvemos voltar para casa. Assim que entramos no carro, meu marido vira pra
mim e solta: “ainda bem que Camila amamentou aquelas crianças na minha frente.
Depois dessa noite, sei que serei um pai bem melhor, com menos preconceito”.
Voltamos pra Recife, e pouco tempo depois, uma amiga de
Alexandre não estava conseguindo registrar seu filho porque ele tinha nascido
em casa. A tabeliã do cartório, afirmava que a enfermeira obstetra não tinha
autorização legal pra emitir o DNV (declaração de nascido vivo). E eu, que
estava totalmente encantada com o parto domiciliar, me dispus a ajudar.
No outro dia, me encontrei com o marido dela e com a
parteira. Entramos em delegacia, ouvimos palavras cheias de preconceito, demos
entrevista para tv, falamos com a juíza competente, e depois de mais de 10
horas conseguimos registrar a criança. Mas dez horas ao lado de Tati Frank
(parteira), não são 10 horas normais. Antes dela, meu mundo já estava girando.
Depois, ele só girou mais e mais. Tati é um dos seres mais especiais que já
conheci na minha vida. É uma mulher aguerrida, forte, sincera, mas que chora ao
falar dos partos que assiste.
Pois bem, registramos o pequeno Luiz, e poucos dias depois
ele teve coqueluche. Ficou mal, precisou se internar, e graças ao nosso
registro, ele tinha plano de saúde. Ele tinha uma certidão. Só depois de alguns
dias foi que me dei conta da importância daquela nossa luta.
E ai, eu não parei mais. Descobri que não existem advogados
em Recife atuando nessa área. Tati virou uma grande amiga, e juntamente com
outras mulheres, formamos um grande grupo de ativistas do parto humanizado.
Hoje, dou palestras sobre violência obstétrica, ajudo mulheres a encontrar
obstetras humanizados, tento fazer um trabalho forte de conscientização nas
redes sociais.
Hoje, posso dizer que sou outra pessoa. O Renascimento do
Parto me mudou. Me fez enxergar que toda essa indústria da cesariana está
diretamente ligada a essa nossa sociedade de consumo, que a humanidade está
precisando urgentemente rever a sua forma de pensar e de nascer, e que eu sou
dona do meu próprio corpo.
Deixo aqui registrado o meu agradecimento e a minha profunda
gratidão a vocês: Eduardo Chauvet e Erica de Paula (Renascimento do Parto),
Camila, Tati Frank e Simone Jubert. Esse post demorou, mas chegou. Sigamos
juntos, sempre juntos.